
16/06/2025
Cuidar de Quem Cuida: Renata Gelamo fala sobre presença, afeto e encantamento pela própria voz
É possível cuidar do outro sem antes escutar a si mesmo? Em mais um encontro do Cuidar de Quem Cuida, o LIV convidou a arte-educadora, fonoaudióloga e pesquisadora da voz Renata Gelamo para uma conversa inspiradora sobre a voz como experiência.
Guiada pelos pensamentos do pedagogo Jorge Larrosa, Renata nos lembrou que a experiência não se dá sem pausa. Como nos ensina o autor, vivenciar algo verdadeiramente requer interromper o fluxo acelerado dos dias: parar para pensar, observar, escutar. É preciso desacelerar o pensamento, sentir com mais vagar, sustar o automatismo da ação, cultivar atenção, delicadeza e presença. Falar sobre o que nos atravessa, abrir espaço para a escuta, permitir-se silêncio, encontro, paciência — e tempo. (Larrosa, 2014, p. 25)
A iniciativa faz parte do projeto exclusivo para professores das escolas parceiras do LIV, com o propósito de fortalecer redes de acolhimento e promover o bem-estar de quem cuida todos os dias da aprendizagem e do desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes.
Voz e história: o corpo que fala e lembra
Renata começou a conversa fazendo um convite à escuta, à evocação de memórias e à exposição desses momentos, de maneira subjetiva e poética, trazendo memórias da infância: a avó que cantava no quintal, a mãe que embalava com cantigas de ninar. “Minha mãe cantava, e o peito dela vibrava. Eu sentia essa vibração. Era um afeto físico”, relembrou.
Essa relação afetiva com a escuta moldou sua trajetória profissional e a conduziu para a Fonoaudiologia, área que, mais tarde, se somaria à Arte e à Educação em sua pesquisa sobre a cartografia poética das vozes.
Escutar a própria voz: um gesto de cuidado
Como pronunciamos nosso nome? Como podemos identificar a melodia com a qual sempre nos chamaram? Se a melodia é a identidade sonora, como gostaríamos de compor as notas do nosso próprio nome? Essas provocações todas permearam uma noite de percepções do que diariamente nos passa como banalidade, em um mergulho de autoconhecimento.
Muitas vezes, a rotina do professor exige tanto, que o próprio corpo passa despercebido. Mas a voz — esse canal direto entre o sentir e o comunicar — costuma ser a primeira a dar sinais de sobrecarga.
“Quando conseguimos escutar nossa própria voz em meio ao movimento, algo muda. Estar em presença com o que se vive e se diz nos protege. Faz com que a gente vá mais inteiro para o encontro com o outro”, afirmou Renata.
Cuidados que vão além da técnica: como não se perder na própria voz?
Durante o encontro, Renata também compartilhou cuidados simples, ainda que essenciais, para preservar a vitalidade vocal: hidratação constante, pausas ao longo do dia, aquecimento da voz e atenção às tensões físicas, especialmente na região cervical.
Mas esses cuidados não podem ser pensados de forma descolada da realidade. Muitos professores percorrem diferentes escolas no mesmo dia, enfrentam salas cheias, lidam com ruído constante e precisam falar alto por horas. Esse cenário impacta diretamente a forma como a voz é usada — tanto como expressão de identidade quanto como ponte para o encontro com o outro.
Por isso, além das orientações técnicas, Renata propõe pequenas práticas de presença ao longo do dia: um minuto de silêncio entre uma aula e outra, respirar de forma consciente antes de começar uma nova turma, perceber o próprio corpo antes de falar: “o que faz bem pro corpo faz bem pra voz. Uma musculatura relaxada, um gesto gentil consigo, tudo isso reverbera na maneira como falamos e, mais ainda, como nos escutamos”.
Cartografar a própria voz: criar presença e significado
Mais do que falar bem, a proposta de Renata é habitar a própria voz com autenticidade. Inspirada na noção de cartografia de Deleuze — entendida como um modo de acompanhar processos vivos e singulares, sem buscar um modelo fixo — ela propõe uma escuta da voz que considera histórias, afetos e experiências. “Pensar a voz apenas como instrumento é limitador. A cartografia poética propõe um outro caminho: criar vínculos com a nossa história e assumir a narrativa que nos constitui.”
“(…) encontrar a voz é um ato de resistência. Falar se torna tanto uma forma de se engajar em uma autotransformação ativa quanto um rito de passagem quando alguém deixa de ser objeto e se transforma em sujeito. Apenas como sujeitos é que nós podemos falar. Como objetos, permanecemos sem voz – e nossos seres, definidos e interpretados pelos outros.” bell hooks – Erguer a Voz, pag. 45 (2019)
Ao citar bell hooks, ela convida os professores a erguerem sua voz como gesto de criação — não só de ensino, mas também de existência.
A voz como lugar de encantamento e de intimidade
Encerrando sua fala com ternura, Renata compartilhou uma ideia que ficou no ar: “a voz pode ser um lugar de encantamento”. Ao experimentar novos tons, pausas, palavras, o educador pode criar uma relação mais íntima consigo mesmo e, assim, tocar de maneira mais genuína seus alunos.
“Com a minha voz, eu toco outra pessoa”, disse. E, talvez por isso, cuidar da própria voz seja também uma forma profunda de cuidar do outro.
Essas são algumas das reflexões que marcaram o segundo encontro do projeto Cuidar de Quem Cuida. O LIV segue ao lado dos professores na construção de redes de apoio emocional, oferecendo espaços de escuta, de inspiração e de pertencimento.
Se sua escola é parceira do nosso programa, fique atento(a) às comunicações para saber como participar dos próximos encontros.
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O LIV – Laboratório Inteligência de Vida é o programa de educação socioemocional presente em escolas de todo o Brasil, criando espaços de fala e escuta para ampliar a compreensão de si, do outro e do mundo.